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Together | O conto macabro

Saudações, caríssimos leitores! Pois é, demorei - muito, diga-se de passagem -, mas finalmente consegui terminar o conto que me propus a fazer. Em Outubro desse ano, a blogagem do Together consistiu em escrever um conto de terror a partir de um conjunto de palavras fornecido na proposta. Eu não tinha intenção de participar a princípio, mas daí eu acabei mudando de ideia no final do mês e selecionei um conjunto pra mim mesma - nem preciso dizer que não rolou, no fim das contas, porque obviamente não apareceu nenhum conto aqui pra vocês lerem em Outubro, né? Hahaha!
De qualquer forma, uma das exigências dessa blogagem era não reservar um conjunto de palavras e desistir de escrever depois. Então é basicamente isso: tô quase três semanas atrasada, mas enfim encontrei a inspiração e num dia só eu sentei e escrevi tudo. É nóis que voa bruxão /,,/
O meu conjunto de palavras foi esse aqui:
25. Experimento - Humanos - Morto-vivo - La Cucaracha
Minha inspiração acabou vindo por meio da música Tag, You're It da Melanie Masrtinez, cuja letra sempre me apavora mas me inspira de alguma forma - por esse motivo, incluí alguns quotes dela ao longo do texto, embora fora da ordem original da música. Recomendo ouví-la ao longo da leitura, caso queisam se inspirar! Ainda, acabei ouvindo Sochiopath do Lucas King mais ao final, e foi uma experiência muito curiosa porque o clima da música foi mudando e ficando mais tenso conforme eu escrevia também, hahaha!
Minhas ideias acabaram mudando ao longo da escrita, então não sei se consegui fazer uma boa transição entre o início, clímax e final do conto. Espero que não tenha ficado muito confuso, e que vocês sintam calafrios durante a leitura! ;)





Era o sonho de toda jovem cientista, recém-saída de uma pós graduação: uma proposta para trabalhar como assistente no laboratório de um pesquisador renomado. Num país onde todo tipo de incentivo monetário à pesquisa nunca é seguro ou definitivo, Elise imaginou que não poderia ter mais sorte quando conseguiu o estágio. O pesquisador em questão, Dr. Evandro Mathias, era praticamente uma celebridade na medicina, conhecido principalmente por suas pesquisas em transplantes de todo o tipo - tido como gênio, já havia realizado pós-doutorado fora do país e palestrado mundo afora sobre seus fascinantes achados. Por qualquer razão que fosse, no entanto, já faziam alguns anos que ele andava mais recluso, mal participando da comunidade acadêmica - o que fez a sua busca por uma nova estagiária causar alvoroço entre os jovens pesquisadores do meio. Ainda que fosse muito capaz, Elise - uma mestre recém-entitulada - se sentia verdadeiramente abençoada pela ciência por ter sido escolhida para viver uma experiência tão enriquecedora. Sentia-se grata pelo que acreditava ser um presente que a vida lhe trouxera.
Infelizmente, Elise estava enganada.
Me olhando através de sua janela
Garoto, você estava de olho em mim
A primeira vez que Elise sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha quando se deparou com aquele olhar, pensou ser apenhas um certo nervosismo. Mathias era um mestre admirável, ela só não queria decepcioná-lo.
Não pensara que o olhar sombrio e morto do cientista fosse assim tão macabro. Era coisa de sua cabeça, provavelmente - uma certa ansiedade. Talvez fosse o cenário, o ambinte: o jardim da casa era seco e pontiagudo, e a pintura lascada e mofada do casarão já vira dias melhores. Estava nublado, também. Devia ser alguma resposta psicobiológica estúpia, provocada por essas baboseiras que a mídia pop coloca em nossas cabeças.

Por um minuto, no entanto... Pela janela embaçada, os olhos dele pareciam brilhar.

{ como quem se depara com um b a n q u e t e }

O arranjo não era bem o que ela esperava de início. Mathias desejava uma assistente - a anterior havia abandonado o programa antes dos 6 meses pré-estabelecidos. Poucos sabiam do programa, visto que ele já não se envolvia tanto com o meio acadêmico quanto antes. Ele não sabia nomear o que levou a assistente a deixar a pesquisa sem aviso prévio.

- Era uma boa moça. Dedicada, inteligente... Foi informada desde o início de que trabalharia em meu laboratório particular, aqui em casa, e sugeri algumas hospedagens aqui pela região, caso não quiesse se hospedar aqui. A casa é enorme, como você pode ver, então não seria problema caso desejasse cortar gastos, entende?

- Claro, Doutor. Talvez a pesquisa não fosse o que ela esperava?

Ele bebeu um gole de seu chá.

- Certamente.

{ ninguém esperaria algo desse "porte", não é? }

A pesquisa era sobre transplantente de membros do corpo, tema pelo qual Elise se interessara desde o início da graduação em medicina. Ninguém precisa mais do corpo depois que morre - braços e pernas inclusos. Nada mais justo do que imaginar a possibilidade de doá-los a pessoa vivas que os tenham perdido, não?
Por motivos óbvios, não havia nenhum experimento em humanos no laboratório do Dr. Mathias. Sua pesquisa era mais voltada às hipóteses teóricas, inspeção de tecidos e conexões nervosas relacionadas à movimentação dos membros. A ideia era entender o quanto era necessário do corpo original para o êxito de um transplante; entender por até quanto tempo era possível manter um membro doado até que ele precisasse ser descartado; qual a maneira mais efetiva de pensar um transplante de membro com mínima chance de rejeição do corpo original, coisas assim. Elise adorava, e cada dia mais achava estranho o suposto desaparecimento da assistente anterior. Somado a isso o fato de que sequer precisava preocupar-se com os gastos com alimentação e hospedagem, o programa oferecido por Mathias parecia um sonho, em todos os níveis.
Levou algumas semanas para que ela começasse a desconfiar disso, na verdade.
Pega-Pega, está com você!
Foi numa caminha à esmo pelo bairro, num sábado à tarde, que os primeiros alarmes começaram a soar em sua cabeça.
Elise se deparara com uma senhorinha adorável, muito animada com uma nova moradora nesse "lugarzinho onde quase nada acontece" - palavras dela, não de Elise.

- A coisa mais interessante que aconteceu por aqui nesse fim de mundo foi o sumiço daquelas moças. Umas mocinhas tão bonitas, gostosas de conversar, sabe? A polícia até apareceu por aí, fazendo perguntas pra todo mundo, mas ninguém sabe delas. Dizem que devem ter fugido pra namorar ou coisa assim, porque eram bem jovens, sabe?

- Nossa, que coisa horrível, Dona Lucinda! Eram daqui da cidade?

- Não, menina, não eram daqui, não. Parece que vieram a trabalho. Tinha uma que sumiu assim, mais recentemente, a Elisângela. Um amor de menina - loirinha assim, do olho claro, sabe? Ela vinha sempre aqui na padaria. Disse que era pesquisadora, sabe? Uma moça assim inteligente, falava bem! Fiquei tão triste quando ela foi embora... Mas a polícia não veio atrás dela, não. Tem um senhorzinho aqui do bairro, o Frederico, que trabalha ali na casa de um moço bonito, jovem, disse que a moça trabalhava lá com eles. Ele tava tão chateado, menina, que a Elisângela foi embora assim, sem mais nem menos! Inclusive, se não me engano, teve uma outra que trabalhava lá com eles também, mas essa eu não conheci. Acho que vi de relance uma moça assim, fechada, com cara de esperta, sabe? Mas não conversei com ela, não.

Elise sentiu o calafrio subir-lhe a espinha, mais uma vez, e um certo mal-estar instalar-se por todo o seu corpo. Despediu-se educamente, pegou seu pacote em cima do balcão e saiu de lá apressada.
Havia comprado pães de queijo para viagem. Pensou que o caseiro, Seu Frederico, provavelmente ia gostar de comê-los com café.

{ são muitas coincidências, você não acha? }

Dali em diante, Elise começou a perceber uma série de coisas que pareciam ter lhe passado despercebido de início. O fato de que Mathias nunca saía de casa - ao ponto de que sua pele era pálida, como se não visse a luz do sol há algum tempo. Também havia notado que, ao cair de noite, ele nunca se recolhia ao andar de cima, onde ficavam os quartos do casarão. Sempre desaparecia pelo andar de baixo, e não importava o quão cedo Elise se levantasse, nunca esbarrava com ele pelo segundo andar - ele sempre parecia surgir da porta que levava ao laboratório, no subsolo. Onde haviam algumas salas trancadas, pelas quais Elise não se interessara até então.
Pela primeira vez, viu um segundo sentido na recomendação de Seu Frederico, quando lhe orientou a não tentar entrar em alguns cômodos - que permaneciam igualmente trancados.

- O Doutor não gosta. Diz que tem coisas dele que não quer que mexe, sabe?

A essa altura, Elise já não dormia - sua mente permanecia ligada em espirais de pensamentos conspiratórios, que a impediam de pegar no sono ao longo de quase toda a noite. Talvez, seu primeiro erro.
Sentia como se houvessem olhos sobre ela, vigiando. Olhos sombrios, de morto-vivo, com um brilho estranho neles. Como se atravessassem as paredes do quarto da hóspede, e monitorassem seus pulmões.
[ Eu amo quando te ouço respirar
Torço para Deus que você nunca vá embora ]
- Você sabe o motivo por detrás do seu nome?

Elise quase derrubou o tubo de ensaio que tinha em mãos. Fechou os olhos e respirou fundo - sua paranóia estava saindo do controle. Talvez devesse consultar um psiquiatra. Pedir uns dias de folga, quem sabe.
Sair correndo dali enquanto ainda tinha tempo.

- Perdão, o que o senhor disse?

- Seu nome, Elise. Sabe porque escolheram lhe chamar assim?

- Ah. - que pergunta estranha. - Meu avô era músico. Fã de Beethoven. Meu pai decidiu homenageá-lo quando nasci, porque Für Elise era sua música favorita. Algo assim, nunca me interessei muito pela história, na verdade - um riso sem-graça. Não queria falar mais de si mesma com o cientista.

- Uma fantástica escolha, eu diria - ele virou-se, ocupando-se com suas anotações e relatórios - Uma da qual gosto muito, particularmente. Seu avô era certamente um homem de muito bom gosto.

- É, hm. Eu não saberia dizer - ela virou-se para o balcão de trabalho, observando seus instrumentos. O que estava pesquisando, afinal? - Como disse, nunca me interessei muito. Não conheci meu avô, também, então...

- Mas ouviu a melodia?

- Ah, sim! Sim, meu pai a tocou pra mim algumas vezes.

- Belíssima, não? Conheci-a também por alguém que tocava, muito...

Elise esperou alguns minutos, e quando o silêncio permaneceu estendendo-se, virou-se para o cientista. Seus olhos pareciam perdidos numa lembrança, como se ele não estivesse mais ali.

- Doutor?

- Oh. - ele piscou, e sua feição se transformara. Havia uma sombra amarga sobre seu rosto - Uma bela melodia. Belíssima. Mas enfim, voltemos ao trabalho.
Uni, duni, tê
Pegue uma dama pelos pés - se ela gritar, não a deixe fugir
Foi acordada por um frio na espinha.
Ao fundo, de algum lugar da casa, podia jurar que ouvia Für Elise, de Beethoven, tocada ao piano.
Um pouquinho de veneno em mim
Consigo sentir o gosto da sua pele em meus dentes
Elise deveria ter dado mais atenção aos sinais que dera à si mesma.
Passaram-se dois meses e três semanas desde que iniciara o trabalho com Mathias. Tentou convencer-se de que as história de Dona Lucinda eram pura fofoca e, para controlar os pensamentos ansiosos, passou a adotar certas medidas de segurança - embora não quisesse chamá-las assim em sua cabeça. Só alguns cuidados, talvez.
Passou a ligar para sua mãe todas as noites, algumas horas antes de dormir, sem excessão. Só pra jogar conversa fora, matar as saudes, por quê não? Também pegou o costume de trancar a porta do quarto à noite, e arrastar a escrivaninha até a mesma. A cômoda era arrastada até a janela, tampando-a parcialmente. Embora tanto o Doutor quando o caseiro tenham sido muito respeitosos com ela desde o início, uma jovem não deveria baixar a guarda assim tão facilmente ao residir com dois homens de meia-idade, afinal. Ainda mais ela, uma acadêmica incorrigível que sequer considerou aprender alguns golpes de auto-defesa ao longo de sua breve vida. Mais um erro para sua lista.
Por fim, Elise concluiu que precisava provar para si mesma que tudo não passava de uma história boba de sua cabeça. Faltavam 5 semanas para terminar o programa de estágio, e julgava que seu rendimento estava abaixo do que gostaria. Dr. Mathias, ao contrário, tecia-lhe elogios quanto à sua produção - parabenizava-a por encontrar pequenos erros e inconsistências em suas anotações, e por ter percebido pela primeira vez "em anos" (palavras dele) um marcador protéico relevante para a possibilidade de rejeição dos membros transplantados.

- Você parece ter uma certa genialidade, Elise, como o compositor que inspirou seu nome. Fantástico, fantástico! - ele disse, batendo as mãos, eufórico.

Ela só precisava terminar o estágio. Seu currículo estava feito, e sua carreira despontaria dali em diante. Ela não podia jogar todo o trabalho que desenvolvera nos últimos meses para o alto por causa de uma fantasia boba. E foi por isso que julgou relevante visitar as áreas extras do laboratório subterrâneo - as portas trancadas, que nunca visitava, em respeito às orientações de Frederico. Não é como se houvesse algo tenebroso escondido por detrás delas, não é mesmo? Talvez ela devesse ver por si só o que deveriam ser, na pior hipótese, alguns instrumentos que ainda não haviam sido legalizados no país.

{ afinal, "tenebroso" é uma questão subjetiva, não? }
Um pouquinho de veneno em mim
Consigo sentir o gosto da sua pele em meus dentes
- Não vou demorar muito, não! Mas minha mãezinha já está velhinha, e minha irmã não dirige, sabe?

- Não se preocupe, Frederico. Tome seu tempo, cuide de sua família. Você já faz mais do que o necessário por mim, uma noite de folga não é nada com o que se preocupar. Eu e a jovem Elise certamente podemos cuidar de nós mesmos, não?

Ele sorriu-lhe. Elise tentou sorrir de volta - e passar alguma confiança de que sim, poderia cuidar-se sozinha sem problemas. Em um casarão bizarro, cujas paredes descascavam e o mofo tomava conta de alguns cantos, ainda que pertencesse a um renomado cientista e tivesse um caseiro dedicado. Ligeiramente afastado do resto das casas do bairro. Numa noite chuvosa e lamacenta.
Certamente, ela podeira se cuidar. Por que não poderia?

- Bom, eu agradeço o senhor, Doutor. Não deve ser nada demais, mas na idade dela, né? Melhor cuidar...

- E você está certíssimo, Frederico. Vá em paz, não se preocupe muito conosco. Fique alguns dias, se achar necessário. E tome cuidado com a chuva, sim?

Naquela noite, Elise optou por levar consigo um bisturi. Mal os usavam no laboratório, e duvidava que Mathias sentisse falta. Não queria pensar muito no motivo pelo qual optou por carregar o instrumento consigo, preso por debaixo da calça. Talvez pra compensar a falta das aulas de auto-defesa que se viu desejando ter feito antes.
Ao longo da noite, a chuva se intensificara. Mal conseguia se acostumar com o barulho, tão habituada ao silêncio mórbido e constante do casarão. Julgou que o ruído era conveniente, contudo, pois poderia circular mais tranquila pelos corredores.
Desceu lentamente para o primeiro andar do sobrado, e caminhou a passos leves até a extrema esquerda da casa. Abriu a porta de madeira velha com cuidado, e sentiu calafrios enquando descia pela curta escadaria de metal. Envolveu-se com os braços, na tentativa de sentir-se mais quente - e segura - e ficou parada na base das escadas, sem saber muito o que fazer. Deu passos largos e virou à direita, fitando o longo corredor escuro à sua frente. Contara cinco portas - a primeira à direita continha o depósito, com materiais e utensílios necessários para o trabalho, e ao lado deste, ficava o pequeno banheiro. Depois deste vinham as largas portas de metal do laboratório, asseguradas pela fechadura eletrônica.
Se ia fazer isso, tinha que fazer logo, decidiu Elise. E colocou-se a caminhar a passos largos pelo extenso corredor. A próxima porta estava a metros de distância do laboratório e, próxima a ela, duas grandes portas lhe encaravam. Mathias sequer as mencionara quando lhe mostrou o local de trabalho - como se não existissem, como se seu interesse sequer devese se aproximar dali.

{ de fato, não deveria mesmo }

Primeiro, tentou abrir as grandes portas, no final do corredor. Pareciam portas de hospital - velhas, com o aço já arranhado, e os vidros estavam opacos de tão velhos. Algo parecia cobrir-lhes por dentro; decidiu tentar a porta à direita. Não parecia ter tranca, apenas uma maçaneta velha, como a dos antigos consultórios médicos que frequentara na infância. Tinha um aspecto envelhecido - devia ter sido branca, mas o revestimento plástico já há muito havia amarelado. Por um segundo, esqueceu-se totalmente das histórias de Dona Lucinda, do jardim seco e macabro, do tom adoecido da pele de Mathias. Por um segundo, deixou-se envolver pela inocente curiosidade, que carregara consigo até a graduação e, posteriormente, transformou-se em certa qualidade investigativa. Elise deparava-se com um enigma, e queria saber o que havia por detrás dele.

{ e essa imagem, ah, ela não esqueceria }

A primeira coisa que notou foi o sangue. Havia sangue pelas paredes, pelo chão de cimento queimado - como se já estivesse ali há tanto tempo que, mesmo lavando, não sairia mais. Depois, percebeu o quão minúscula era a sala. O plástico que envolvia a única lâmpada estava tão sujo que, embora a luz estivesse acesa, tudo tinha um tom meio marrom-esverdeado, intensificando o clima claustrofóbico. A única coisa ali era um estranho híbrido entre maca e cadeira, completamente feito em metal, com o que pareciam ser cintos de couro velho nas extremidades. Era quase como uma maca estética, sem o estofado característico delas. O metal parecia gasto, como se tivesse sido lavado com afinco por muitas e muitas vezes. O lugar era tão particular que Elise mal se atentou a imagem por inteiro, fascinada com sueus detalhes. Inclusive, esqueceu-se até mesmo de ficar atenta ao que acontecia ao seu redor.

- Um pouco destemida demais, não acha, querida Elise?

Instintivamente, seu corpo virou-se - mas o agressor era mais rápido. Sentiu uma mão pressionando seus lábios, enquanto outra parecia colocar algo sobre seu nariz - o cheiro doce de clorofórmio invadindo seus pulmões. E o ambiente já mal-iluminado transformou-se em escuridão em questão de segundos.
Agarrou minha mão e me empurrou Tirou as palavras da minha boca
Quando voltou a si, o que vira diante de seus olhos era puro horror.
O cheiro de formaldeído era insuportável, como se galões e mais galões do líquido houvessem sido despejados pela extensa sala. Mas o que prendeu sua atenção foi a composição bizarra à sua frente - uma espécie de aquário extenso, sob uma maca baixa, que a encarava como se lhe questionasse: e agora, Elise? Está bom o suficiente pra você?
Só então todas as peças se encaixaram em sua cabeça. Um homem com mais de 40 anos, vivendo sozinho em uma casa mal-cuidada, para a qual ninguém daria atenção. Um suposto caseiro, um senhor já mais idoso, que fazia o possível para manter o casarão podre em ordem. Uma cidade relativamente calma e pequena, onde faltavam recursos para algo de tamanha magnitude.
Jovens desaparecidas, sem pistas. Cientistas inteligentíssimas, que fariam de tudo para colocar em seus currículos um programa de estágio com um dos mais renomados pesquisadores da medicina atual.
Por Deus, o maldito tema de pesquisa. Por quanto tempo preservar membros amputados para transplante, como garantir a menor taxa de rejeição possível a partir de análise molecular. Elise serrou os olhos. Por Deus, por Deus!

- Eu honestamente esperava que você demorasse um pouco mais para acordar. Mas muito me agrada que sua primeira visão seja minha produção. Linda, não acha?

Elise encarou novamente o recipiente de vidro. Ali, mergulhado no que ela julgava serem litros e mais litros de formaldeído, estava algo horroroso, digno de pertencer a um conto de terror. Ela nunca mais riria quando as pessoas lhe camassem de "Dra. Frankenstein".
Do ponto de vista científico, no entanto, precisava concordar. As partes pareciam mesclar-se de maneira fluída, compondo um corpo jovem e esbelto. Seus treinados olhos de médica lhe permitiam ver claramente cada costura, cada recorte, e apesar de sua estética, o corpo ali presente não lhe parecia real. As proporções eram tão perfeitas que nada ali parecia verdadeiro, criado pela genética e divisão celular.

- Imaginei que fosse entender. Vejo em seus olhos, Elise, que consegue admirar minha arte. Posso lhe garantir ser algo que poucos conseguem fazer.

Elise não respondia - não conseguia. Embora se sentisse alerta, seu corpo pesava, sua língua enchia-lhe a boca de maneira desconfortável. Mathias permanecia de pé, a seu lado, com as mãos nos bolsos, enquanto encarava o vidro iluminado. Ela não tinha energia o suficiente para virar o rosto, e a cada segundo que encarava a criatura a sua frente, mais o sentimento de horror e incredulidade se instaurava em seu peito.
O que Elise encarava era uma colcha de retalhos. No rosto, haviam pequenas cicatrizes nos lábios, o que indicava que o procedimento ali realizado fora feito ainda em vida, e cicatrizado. Os olhos eram claros, vívidos, porém pareciam encaixar-se de forma estranha, como se fossem pequenos para o crânio - possivelmente porque não lhe pertenciam, de fato. Conseguia ver uma linha fina, saindo da orelha e passando pela linha da mandíbula - supôs que se estendia até o outro lado do rosto e, horrizada, notou que a marca também tinha indícios de cicatrização. Outro procedimento realizado em vida.
Na base do pescoço, podia ver uma sutura, que só era perceptível pela forma como a carne não se grudava de forma natural. Alguma linha fina fora utilizada no procedimento, como um fio de nylon - mais fino, no entando. Do pescoço para baixo havia um mar de marcas - uma leve linha esbranquiçada circunscrevia os seios, e parecia que a vulva também viera de outro doador - mais jovem do que o busto, talvez adolescente. Os braços foram compostos de maneira uniforme, a partir dos ombros, e Elise conseguia enxergar o padrão de corte: início do braço até próximo do cotovelo; cotovelos e antebraços e, em seguida, mãos. Haviam seis suturas ainda avermelhadas em três dedos de cada mão, e o corpo parecia completo o suficiente até parte da virilha. Ao final do tanque, Elise podia ver um par de pés. Faltavam-lhe as pernas por inteiro, da virilha aos tornozelos.
Mathias estava construindo uma mulher.
[ Eu te cortei e te fiz de jantar
Você alcançou o fim, você é a vencedora ]
Elise voltara a encarar o rosto. Ouviu um ruído a seu lado, uma espécie de riso.

- Ela tem lindos olhos, não tem?
Sim, tinha. Lindos olhos claros que pareciam boiar em seu crânio. Elize percebeu pequenas lacerações em volta das pálpebras, e sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Mathias pareceu perceber seu ponto de atenção.

- Sim, um pouco danificada. Tentei ser o mais gentil possível, mas a doadora não parava de se mexer. Por qualquer motivo, seu corpo não respondia bem à anestesia. Não tive muita escolha a não ser realizar o procedimento assim mesmo. Mas eu queria muito que ela tivesse os olhos de minha mãe, ou a composição não faria sentido. Veja, Elise - ele disse, e ela pode vê-lo agachando-se lentamente por sua visão periférica. Seus olhos a encaravam - Você já deve ter ouvido essa história, afinal, os repórteres adoram falar sobre a vida pessoal dos extraordínários como eu, não? Minha mãe era uma mulher maravilhosa. Ela sabia, desde muito cedo, que eu faria grandes coisas, entende? E foi por isso que ela nunca permitiu que eu me envolvesse com futilidades. Ela acreditava que a pureza da alma humana era preservada quando nos dedicávamos ao bem maior.
Ela me disse tantas, tantas vezes que as mulheres que se aproximavam de mim eram interesseiras... Que ela nunca permitiria que eu me manchasse com os prazere da carne. Que eu precisava encontrar a mulher perfeita, me juntar a ela, e construir junto dela algo sólido e admirável.
Mas ah, Elise! - ele levantou-se, suspirando, voltando o olhar para o recipiente - É tão difícil encontrar uma mulher perfeita. Não pude encontrá-la durante minha juventude. Uma mulher que fosse bela, do lar. Verdadeiramente virtuosa. Uma mulher que pudesse ver o mundo com a pureza dos olhos de minha mãe.

Elise sentia o estômago embrulhar-se. Sentiu, também, o movimento dos dedos do pé.

- Não precisei de muito para, enfim, perceber que Deus havia me entregado minha geniealidade com um propósito. Eu tenho o talento necessário para criar essa perfeição. E eu não poderia abandonar essa missão divina, tendo o talento, os recursos... Com a morte de minha mãe, eu concluí que havia esperado tempo demais. Preservei aquilo que me era mais precioso nela, e decidi criar eu mesmo meu destino. Não demorou muito para que eu conseguisse encontrar as partes corretas em meio a essa multidão fútil e dissimulada de mulheres.
E preciso agradecer-lhe, Elise. Sem o seu olhar atencioso, algumas coisas me teriam passado despercebidas. Seria mais simples, talvez, fazer algumas alterações - ele passou os dedos por cima do vidro, absorto em seus pensamentos - São tantos detalhes. Mas com o passar dos anos, eu finalmente consegui juntar todas as partes necessárias.

Distraído com seu monólogo, o cientista não percebera ainda que seu corpo recobrava os movimentos. Elise olhou para as grandes portas de metal, tentando calcular quanto tempo levaria se conseguisse correr até lá. Talvez o suficiente para sair da sala - mas não para subir as escadas.
Não tinha muitas opções.

- Talvez você tenha o que me falta?

Seus músculos congelaram. Voltou o olhar para o homem ali em pé a seu lado, que a encarava com uma leveza bizarra. Como quem pergunta o que você gostaria para acompanhar seu chá.

- Você me parece ter uma proporção quase perfeita, Elise. Não é exatamente o que procuro, mas suponho que alguns testes podem ser feitos. Só assim podemos confirmar nossas hipóteses, não?

Ele lhe sorriu. Elise mal sentiu a picada em seu pescoço, pois a escuridão a envolveu rapidamente.
Alguém pode me ouvir quando estou escondida no subsolo?
Alguém pode me ouvir quando falo comigo mesma?
Ao longo de todo o tempo que esteve no subsolo - teorizava que pudessem ser dias, mas não conseguia ficar acordada por tempo o suficiente para ter certeza -, Elise sentia um misto de calmaria mórbida e completo desespero. Ele a alimentava com soro, e parecia fazer todo tipo de teste - testara os tecidos de sua pele, comparando-os aos dos retalhos que mantinha unidos em formol, e parecia fazer análises com seu sangue, seus tecidos, secreções em geral de seu corpo. Não sentia nenhuma parte de si, e em alguns momentos perguntava-se se era efeito de alguma susbstância ou se não haviam mais partes dela para serem sentidas. Sentira uma incisão profunda em sua panturrilha, e recordava-se ter desmaiado em função da dor. Quando conseguia ficar alerta o suficiente, levantava a cabeça e checava se seu corpo permanecia inteiro - e, quando via seus membros ainda todos no lugar, apesar das marcas que surgiam, não podia deixar de perguntar-se por quanto tempo permaneceria assim. De relance, vira algumas chapas de radiografia presas num painel, como se ele checasse se seus ossos eram do tamanho correto.
Elise não sabia se deveria manter esperanças.
Correndo pelo estacionamento
Ele me perseguiu e ele não parava
E, mais uma vez, as circunstâncias lhe provaram errada.
Já não sabia quanto tempo havia perdido no subsolo. Mas conseguira perceber que já estava acordada há algumas horas. Não sentia efeitos de nenhuma susbstância, e conseguia mexer os dedos dos pés e das mãos. Não ouvia ruídos além do maquinário científico e do aparelho que checava seus batimentos cardíacos e pressão arterial. Virou o rosto, constatando o que esperava: estava sozinha no laboratório, acompanhada apenas pelos retalhos de corpo imersos em formol.
Não pensou muito.
Checou se conseguia mover os membros superiores. Parecia devagar, como se tivesse ficado deitada por tempo demais. Com cuidado, tentou virar-se na maca acolchoada, e tirou o soro de seu braço. Sentou-se lentamente, constantando com pesar as dores horríveis nas duas pernas - mais a direita do que a esquerda. Não haviam roupas nem sapatos, nem nada que pudesse cobrir seu corpo. Observou o ambiente e constatou, para seu desespero, que não haviam ferramentas que pudesse usar para defender-se - Mathias levara tudo consigo.
Lentamente, colocou-se de pé. Engoliu o grito que subiu-lhe à garganta e, a passos curtos e pesados, cambaleou até as portas de metal. Não estavam trancadas.
O corredor estava livre. Não perdeu tempo.
Escorando-se à parede, tentou caminhar até a escadaria de metal. Foi surpreendida pelo barulho de uma porta de abrindo.

- O que está fazendo em pé, Elise? Você vai se machucar. Sua perna não está em condições de carregar seu peso no momento.

Constatou com horror que não só o cientista estava sala ao lado do laboratório onde que examinava, como estava acompanhado. Embora, a julgar pelo estado do corpo aberto que lhe encarava de volta, não poderia dizer que se tratava de companhia. Haviam caixas com gelo espalhadas pelo aposento.
Ao detectar um leve movimento por parte do homem à sua frente, Elise sentiu a adrenalina bombear o sangue em suas veias. E numa força recém-encontrada, disparou em direção à escadaria. Pôde ouvir um riso histérico ao fundo.

- Minha cara, não seja tola! Você é muito mais inteligente do que isso, Elise, volte aqui.

Elise não teve forças para subir os degraus, caindo dolorosamente entre eles. Usou das mãos para arrastar-se escada acima, e pôde ouvir com horror os passos que se aproximavam dela, ecoando sobre o linóleo do extenso corredor. Ouvia, em completo desespero, a voz suave de Mathias ecoando pelo ambiente.

- La cucaracha, la cucaracha ... Ya no puede caminar... Porque no tiene, porque le falta una pata para andar! HÁ! Vamos Elise, não me provoque. Eu ficaria imensamente decepcionado caso você danificasse uma peça importante para mim.

Lágrimas escorriam por suas bochechas, e Elise podia ver o sangue que saía de suas unhas em função da voracidade com a qual se agarrava aos degraus. Seus dedos escorregavam no metal, e ela não conseguiria sozinha. Gritava a plenos pulmões, na esperança de que alguém a escutasse.

- Vamos parar com esse teatro fútil, hm? Venha cá, Elise.

Sentiu a dor subir queimando em seu corpo quando uma mão fria agarrou-lhe a panturrilha, apertando o que parecia uma ferida aberta. O sangue quente escorria por sua perna, e virou-se rapidamente, encarando os olhos sombrios. Brilhavam, como se estivessem frente a um banquete, como se hovesse naquele ser um prazer doentio em vê-la temer pela própria vida.
Provavelmente havia.
E foi movida pelo instinto que Elise ergueu as mãos e fincou os dedos em seus olhos. Permitiu que aquele grito agonizante alimentasse sua motivação, e moveu os dedos o máximo que pôde, com as unhas danificadas pela tentativa de fuga. O líquido quente florescia entre seus dedos, percorria a palma de sua mão e escorria por seu pulso em direção ao chão. Quando deu-se por satisfeita, puxou a mão de volta para si e usou os cotovelos para guiar seu corpo pela escada. Olhava, horrorizada, o corpo decadente de seu algoz enquanto se contorcia e gritava no linóleo verde.
Já no andar de cima, arrastou-se pelo chão, passando por uma sala trancada, pela sala de estar, e dirigiu-se o mais rápido que pôde para a cozinha. Ouvia ao longe os grunhidos de dor e os passos pesados na escada de metal, ecoando quando Mathias perdia o equilíbrio e caía pesadamente entre os degraus. Conseguiu sentar-se em frente ao armário debaixo da pia da cozinha, e encontrou ali o que queria: álcool gel e fósforos, cortesia de Frederico.
De nada adiantava salvar-se sozinha. Aquele monstro precisava ser parado, exterminado, antes que outras jovens presenciassem a própria morte daquela forma.
Movida pela adrenalina, tentou apoiar-se no mármore da pia e, com um grito, ergueu-se. Abriu todas as bocas do fogão, e em completo desespero tentou, por três vezes, abrir a tampa do álcool. Jogou parte da substância pelo chão e seguiu, sem colocar a perna direita no chão, até a porta da cozinha. Teria se ser o suficiente.
Espremento o recipiente de plástico enquanto se movia, seguiu seu caminho até perto do jardim, e ao longe ouviu seu nome ser chamado por aquela voz doentia. Haviam promessas em seu tom, e Elise não queria ficar para vê-las serem cumpridas.
Gritou por ajuda, a plenos pulmões, e quando julgou estar longe o suficiente para sobreviver a uma possível explosão, jogou a garrafa de álcool no chão. Tentou, sem sucesso, acenter três fósforos - Mathias gritava seu nome de dentro da casa, e podia ouví-lo esbarrando pelos móveis de madeira.
Finalmente acendeu um fósforo. Tentou jogá-lo no chão, e ele se apagou na queda. Gritou, frustrada, temendo por si mesma, ouvindo os grunhidos de dentro do casarão. Teve a impressão de ouvir Frederico lhe chamando do outro lado do terreno, mas não podia esperar.
Jogou-se no chão, acendeu o quinto fósforo e colocou-o sobre o álcool. Viu a chama alimentando-se rapidamente, e rolou o corpo o mais longe que conseguiu.

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Frederico tentou, muitas vezes, convencer o Doutor a deixá-lo cuidar do jardim. O espaço era amplo, mas as árvores secas davam um clima meio ruim ao lugar. Acabou descobrindo, junto da polícia, que o motivo pelo qual nunca conseguiu a autorização que desejava, eram os corpos esquartejados que ali eram enterrados.
Até então, haviam encontrado o que pareciam ser partes de 8 mulheres diferentes, com idades entre 16 e 29 anos.
A mídia explorou o assunto à exaustão, e corou heroína a jovem cientista que arriscou a própria vida para dar paz de espírito a tantas famílias que haviam perdido duas filhas nos últimos 4 anos. Segundo a polícia, haviam três ossadas quase intactas, e alguns membros e órgãos em estágios variados de decomposição. Dona Lucinda finalmente descobriu o que aconteceu com Elisângela - a família conseguiu identificá-la por uma marca de nascença no quadril e por exames de DNA. O caixão foi lacrado durante o velório em função da falta do rosto.
Com 30% do corpo queimado, em especial nas pernas e mãos, Elise acabou por mudar o rumo de sua carreira. Passou a estudar sobre restauração de tecidos da pele, em especial em mulheres vítimas de violência. Depois de seu depoimento à polícia, nunca mais falou sobre o caso.
Toda noite, Elise tenta convencer à si mesma que tudo não passou de um terrível pesadelo - Mathias está morto, e sua criação horrenda foi destruída pelas chamas. Tentava dizer a si mesma que ele pagou com a vida por suas torturas e assassinatos.
Toda noite, Elise sonha com uma personificação feminina, sentada de frente para ela. Com finas linhas entre algumas sessões de seu corpo e lhe faltando as pernas, ela bebe um gole de seu de chá, olha em seus olhos e lhe pergunta:

- Você se sente inteira, Elise?


E é por aqui que eu termino minha contribuição para essa blogagem! Vale comentar que, apesar de trabalhar na área de saúde, tenho o total de 0 conhecimentos médicos e alguns termos aqui usados certamente estão incorretos - perdoem a preguiça da autora em fazer uma pesquisa decente antes de colocar a ideia a jogo.
Por fim, espero que tenham gostado do meu conto. Beijos pra quem leu até aqui, e até a próxima! ♥

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Written by Shana | 16 de novembro de 2020 | 2 Comentários | link to this post



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