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Sobre querer morrer
TW: o texto abaixo fala explicitamente sobre ideação suicída e auto-agressão
Num certo momento da minha vida, eu decidi que não cabia compartilhar o que eu sentia com o mundo lá fora. Eu acredito fortemente que a partir do momento em que jogamos algo no mundo, o mundo recebe o direito de devolver algo pra você, e eu percebi relativamente rápido que eu não quero lidar com as opiniões das pessoas às vezes. Não seus gostos, suas vontades e crenças, mas o que elas acham de mim, do que eu falo e o pior: o que elas acham que é o melhor pra mim, mesmo que elas não saibam 1/3 do que eu realmente vivo na prática.

Eu dei algumas dicas aqui algumas vezes - sobre o quão triste e cansada eu estava - e sempre me arrependi. Sempre tinha alguém pra me falar do quanto a vida valia a pena, e as pequenas belezas, etc, etc. Mas hoje, antes de escrever aqui, eu li um texto falando sobre "como é bom não querer morrer", e me dei conta de que... é, é muito bom mesmo. Mas pouca gente sabe dessa conquista, porque a maior parte do mundo não sabe o quanto eu já desejei a morte.

Eu comecei a ter meus primeiros pensamentos sobre a morte quando eu tinha uns 9 anos. Aos 11, eu comecei a questionar se minha vida tinha algum sentido - se alguém sentiria minha falta, se eu ia chegar em algum lugar, se valia a pena acordar no dia seguinte.

Aos 12 eu comecei a me cortar.

E pra resumir muito a história, desde então eu lidei com a ideação suicida - essa companheira ingrata, que cria na gente uma relação tóxica entre querer distância e não conhecer nada além dela. A vida não faz sentido. Não agrada, não acolhe, não é justa. É mais fácil do que parece encontrar razões pra morrer num dia - muito mais fácil do que razões pra viver. E antes que alguém se atreva, já aviso logo: não escrevo pra receber de volta frase de tia do facebook sobre como a vida é linda, e cada dia vale a pena, e você vale muito 'garnier'. Escrevo pra falar sobre o fato de que eu convivi com o constante desejo de morrer por anos, e que colecionei nada menos do que 6 tentativas de suicídio concretas - sim, enquanto eu estava aqui fazendo imagens bonitinhas e resenhas, eu saía de casa a noite com todas as intenções de me colocar em situações das quais eu não ia sair. Sem detalhes, porque '13 reasons why' já fez esse destrabalho de ensinar o que não devia para jovens desavisados.

Eu nunca tive vergonha de ter ideações suicidas. Nunca fui insegura com esse tema. O que me incomodava era a total aversão das pessoas em discutir sobre, em aceitar que às vezes a vida é absolutamente horrível e impossível de se viver - e que bom que algumas pessoas são felizes e nunca sequer consideraram a possibilidade de colocar fim em si mesmas, porque conhveamos: não é a melhor das sensações. Mas às vezes você só quer que tudo o que você sente suma, e que tudo o que você viveu suma, e as pessoas simplesmente não conseguem ter empatia por essas situações porque não conseguem entender esse tipo de dor. E eu não precisava lidar com nada além de mim mesma na maior parte do tempo, porque estar viva já era um esforço sobrehumano diariamente.

Minha última tentativa concreta, e a mais próxima de ser concretizada, foi em 2019. Já com o diploma de psicologia na mão, e com a total compreensão de que o suicida nunca deseja a morte - é a vontade de deixar de viver uma vida violenta, ingrata, insuportável, impossível de viver. É o desejo de deixar de sentir e pensar coisas horríveis sobre si, sobre o mundo, e não conseguir ver nenhuma outra saída da vida que não seja colocar fim nela. Porque no fim do dia é isso: a vida é inconstante, ela não é boa o tempo inteiro, e às vezes você só está tão cansada de tudo o que você viveu que só quer dormir e não acordar mais. A ideia de finalmente descansar e se sentir bem é tão preciosa, e às vezes o sofrimento é tão intenso que nada mais faz sentido. Nada mesmo. Principalmente viver.

Até que minha terapeuta na época teve o insight: sobre o quanto eu pegava toda a raiva que eu sentia pelos outros, pelo mundo, pelas coisas que eu via e vivia, e em vez de jogar ela pro mundo, eu voltava ela pra mim mesma. Aí vinham as agressões, os cortes, os hematomas e quando ficava excepcionalmente desumano, a vontade de morrer. Que era na verdade o desejo de deixar de sofrer o que eu sofria, e não um desejo de morte.

Ninguém tem vontade de morrer. Mas muita gente tem vontade de deixar de viver o que é impossível suportar.

Demorou muito pra eu entender o que me dava essas vontades. Que na maior parte do tempo eu não merecia a minha raiva, que eu não merecia as coisas que aconteciam comigo ou o que as pessoas faziam comigo. Que às vezes a vida é sem sentido mesmo, não agrada, não acolhe e não é justa - mas isso nem sempre é minha culpa. Na verdade, na maioria das vezes não é, é não é colocando fim em mim mesma que as coisas vão se equilibrar mais, ou se resolver. Eu não mereço ser castigada por ser humana; ninguém merece.

Não é sobre "toda vida ser preciosa" ou "toda vida valer a pena". Algumas não valem - quando você mora na rua, sem acalento, sem direitos, sem saúde, sem perspectiva, não vale a pena. Vale a pena pra quem vive no privilégio de ter problemas humanos e corriqueiros, não pra quem vive a desumanidade na pele diariamente. Não querer mais viver é mais do que uma trend, um dia triste de adolescência: é o ápice do sofrimento, e é o nosso medo de encarar a morte que nos impede de ter empatia com esse tipo de dor.

Um dia eu entendi. Depois de mais de 10 anos convivendo com a ideação suicida, eu aprendi a me perguntar de onde o desejo vem, e o que eu posso fazer por mim mesma. Não é um processo coletivo - é uma viagem muito profunda em mim mesma, de muita dor pra chegar ao autoconhecimento necessário. Eu sempre digo pra mim mesma que o suicídio é uma porta que, quando se abre, não dá pra fingir mais que não existe. Você pode trancá-la e seguir outros caminhos, mas enquanto a gente vive vai escutando o tilintar das chaves no bolso. Não dá pra esquecer a dor de não querer viver, e não existe uma cura - cada um vai descobrir consigo qual caminho precisa seguir pra que valha a pena acordar no dia seguinte. O meu foi entender que a raiva que eu sinto dos outros às vezes tem que ser colocada neles mesmo, e que às vezes ser agressiva e falar o que eu penso é o que eu preciso pra sobreviver. E se eu terminar sozinha na vida porque as pessoas acham demais respeitar esses limites, pelo menos eu segui viva, e é isso o que importa.

É muito bom acordar sem vontade de não ter acordado. Mas, como diz o meme, 'só quem viveu sabe'. E só quem já quis não viver sabe valorizar a dor e as pequenas vitórias o tanto que elas realmente merecem. Porque a gente sabe o quanto de sangue e lágrimas deixamos pra trás pra chegar onde chegamos - vivos, ainda que com muitas marcas e incompreensão.

Um brinde à resilicência! Porque a vida, em si, nem sempre merece.


E um lembrete: se você está se perguntando se eu preciso de palavrinhas bonitas, de "uau como você foi forte" e "não pense nisso, busque a espiritualidade", você pode encarecidamente ir se danar. Esse é o discurso que mais me causou dor nesses anos todos e eu literalmente não quero ler. Vá pro inferno com a sua positividade e com o seu medo de lidar com a dor do outro, por obséquio.

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Written by Shana | 12 de julho de 2023 | 4 Comentários | link to this post



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