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Sobre engravidar e dar tempo ao tempo
TW: O texto abaixo fala sobre a vivência feminina de uma pessoa com útero, sobre gravidez e aborto, bem como situações e procedimentos médicos.
Eu tenho pânico de hospital. Tenho um trauma de infância em função de uma questão de saúde, e todo tipo de procedimento médico me causa uma série de problemas - aumento de pressão, desmaio, minhas veias somem, marcas de injeção e hemograma vazam e sangram copiosamente, dores musculares em função do pânico: enfim, uma série de problemas, mesmo.
Em função disso, falar dem gravidez era algo que sempre me incomodava. Eu cresci dizendo que queria ser mãe, que como a minha eu teria meus filhos mais tarde, mas que eu queria muito ver meu bebê se transformando em gente grande, esse discurso bem enraizado mesmo que o patriarcado coloca nas mulheres com útero. Mas conforme fui ficando mais velha, sem nenhum relacionamento sério em toda a minha vida, eu comecei a perceber um certo pânico - primeiro, porque eu estava chegando aos 30, e quanto mais velha você engravida, mais velhos estão seus óvulos e maiores são as chances de síndromes genéticas acontecerem, por exemplo. Segundo, porque a gravidez me apavorava.
Não importa pra qual possibilidade se olhe, por mais "natural" que seja seu processo, ele envolve uma série de procedimentos médicos. E eu sou da trupe que não acha 100% seguro ter filho em casa sem nada - nada contra quem segue esse caminho, mas enquanto alguém que nasceu em uma cesárea de emergência depois de 12h de trabalho de parto, eu tenho minhas preferências. O ponto é que eu já não sabia se entre elas estava, de fato, engravidar.
Foi em 2022 que eu decidi que, na verdade, eu não quero viver uma gravidez. O processo todo me soa penoso, e eu tenho certeza que em função da minha fobia, seria trambém traumático. E foi conversando com a minha mãe, que amou ter filhos e teria mais se pudesse, que recebi o acolhimento que eu precisava pra tomar a minha decisão. Eu não sei se não quero ser mãe, mas se for, não vai ser de filhos gestados por mim. Eu não quero nunca, em hipótese alguma, viver uma gestação - e se acontecer por acidente, bom, vai des-acontecer de alguma forma, acidente ou não (aqui somos pró-discriminalização do aborto sim, sem peso na consciência).

Cerca de 2 ou 3 meses depois de me decidir quanto a isso, descobri que tenho SOP. Uma síndrome metabólica que afeta minha fertilidade e torna o meu corpo pouco capaz de manter uma gravidez. Tem tratamentos para fertilidade? Tem. Tem como controlar os sintomas para evitar um aborto? Tem. Mas a taxa de abortos espontâneos é bem alta, e se eu não queria viver uma gestação, um aborto espontâneo é ainda mais desagradável pra mim.

No começo foi duro. Uma coisa é você decidir o que fazer com o seu corpo e seu futuro, outra coisa é a decisão ser tomada de você. Fiquei no misto de sentimentos de saber que não poderia mudar de ideia simplesmente, de que na nossa cultura esse fato afeta ainda mais as minhas relações amorosas, e me senti triste por saber que talvez eu nem seja capaz de gestar filhos. Por outro lado, senti que a minha vontade foi se confirmando: eu não quero, nem posso, gestar filhos.
Posso criar filhos. Mas eu não tenho nenhuma vontade de passar por diversos tratamentos e procedimentos, que são assiscados a irem por água abaixo (literalmente) com muita dor e sofrimento envolvidos no processo. Não é pra ser, e depois que o luto inicial pela gravidez impossível passou, eu fiquei mais tranquila. Eu decidi, meu corpo decidiu, e essa é a minha realidade agora, e tudo bem.

O que eu não esperava era a liberade que eu passei a sentir. A pressa de arrumar um emprego, arrumar um namorado, comprar uma casa, ganhar 10 mil por mês, foi passando. Eu comecei a aproveitar meus dias sem pressa, a viver a esmo, e embora a pressão social me pegue em alguns momentos, eu fui cada vez mais vendo que não precisava correr. Decidir que eu não queria engravidar me libertou do problema da idade, das pressões que minha família fazia, e das pressões que eu colocava em mim mesma. Nada mais libertador do que causar um climão no almoço de família quando a tia inconveniente pergunta "mas e aí, quando você vai dar netinhos pra sua mãe?" e você responde: pois é, tia, infelizmente eu sou estéril, que vida né non?

Não sou, mas esse é um mero detalhe. Não é como se minha família precisasse saber o que eu faço com meu útero, mas é bom que eles se sintam culpados por perguntar. Quem sabe eles aprender a não perguntar pra ninguém.

No auge dos meus 31 anos, eu tenho percebido cada dia mais o quanto eu valorizo a maternidade, o quanto eu respeito todas as pessoas com útero que gestam, o quanto essa vivência é particularmente bizarra e demanda energia e dedicação, e o quanto eu não tenho a mínima vontade de viver isso. Não quero ter dores nas costas. Não quero fazer acompanhamento médico frequente. Não quero gente desconhecida encostando em mim e na minha barriga. Não quero nada crescendo dentro de mim. Não quero ir no banheiro a cada 20 minutos. Não quero um alienígena esmagando meus órgãos nem quebrando minhas costelas. Não é pra mim, e eu posso viver minha vida no meu tempo, sem me preocupar com meus óvulos, com a menopausa, com me envolver com alguém sem estar totalmente certa disso. Eu nem preciso abrir mão da maternidade em si ao abrir mão da gestação, por que eu deveria me preocupar com isso?

Essa experiência acabou sendo transformadora. Ao abrir mão da gravidez, eu percebi que deixei de compactuar com várias expectativas que a vida e a sociedade têm pra mim. Eu não preciso correr com nada, eu posso avaliar criticamente o quanto a nossa realidade hoje, em 2024, não permite uma série de coisas que eram permitidas aos meus pais nos anos 90, e eu consigo me contentar com as minhas conquistas e com o lugar onde estou. Quero mais - quero voar mais alto, mas não precisa ser hoje. Nem amanhã. Eu tenho pelo menos mais uns 20 anos pra conquistar tudo o que eu quero, pra chegar onde eu quero, e também pra mudar de ideia sobre tudo isso e mais um pouco.

Eu tenho tempo pra viver. E eu posso fazer isso no meu ritmo se eu quiser. E tá tudo bem.

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Written by Shana | 10 de março de 2024 | 4 Comentários | link to this post



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