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Sobre receber um diagnóstico

Mencionei neste blog que, em Agosto do ano passado, iniciei uma avaliação neuropsicológica. Minha queixa era uma suspeita de autismo - depois de passar 2 anos com uma equipe de trabalho tóxica que me fez questionar se eu tinha quaisquer habilidades sociais ou não, com minhas gestoras me trazendo questões de comunicação e relações interpessoais todo ano nas avaliações de desenvolvimento, eu comecei a duvidar se eu realmente sabia ser uma adulta funcional. Somado a isso, eu estava constantemente exausta e desesperançosa, e vinha me percebendo muito sensível a alguns estímulos sensoriais, especialmente luzes e sons, o que me fez concluir que uma avaliação séria viria a calhar.
Meu objetivo? Ter um laudo pra esfregar na cara das pessoas do trabalho, porque eu estava cansada de me sentir "inadequada" o tempo inteiro. Ou as pessoas iam me respeitar por ter alguma questão, ou teriam que engolir que eu não tinha nenhuma.

A avaliação foi num momento muito peculiar. Comecei a mesma na primeira semana de Agosto, e na segunda semana do mesmo mês vivi a maior crise do meu trabalho, que impactou diretamente minha rotina até o final do ano. Precisei desmarcar o 2º encontro com o neuropsicólogo, porque como boa psicóloga eu mesma, sabia que a exaustão e o estresse poderiam alterar o resultado dos testes. Já nesse período, ele me sugeriu retomar a terapia - mas eu não podia, porque estava usando o reembolso do meu convênio justamente para cobrir o gasto com a avaliação (que não foi nada, nada barata. Minha poupança foi com deus).

Num geral, eu gostei bastante do processo. Me divirto muito com atividades que envolvem raciocínio e lógica, então me senti entretida com todos os testes que fizemos, fossem eles para avaliação psico-emocional, fossem para avaliação de habilidades cognitivas. Me irritei consideravelmente com os testes de memória, mas porque eu me vejo como uma pessoa que tem muita preguiça de lembrar coisas. Fui muito honesta nas escalas de avaliação de depressão e ansiedade, e nem precisei ver os resultados pra saber que as duas deram alteradas, porque eu calculei mentalmente meu score enquanto respondia.

Minha avaliação terminou em Outubro. Em novembro, o neuropsicólogo entrou em contato comigo para dizer que não havia conseguido finalizar, porque havia um item que ele vinha achando difícil de fechar, e por isso ele optou por procurar mentores mais experientes do que ele. Fizemos mais um encontro de anamnese, onde ele me fez várias e várias perguntas. Por fim, só tive acesso aos resultados no final de dezembro, já quase na semana do Natal.

Não era autismo. Era Transtorno de Processamento Sensorial.

Antes de ter acesso ao meu laudo, eu discuti muito com minha psicóloga sobre qual era o papel do diagnóstico pra mim, e a verdade é que pouco me importava. O diagnóstico tem uma função bem específica, que é de traçar um plano de tratamento e cuidado, e no fim do dia eu sempre soube quais eram meus limites e potências, e eu sempre lidei com todas as minhas dificuldades. O laudo era pra obrigar as pessoas à minha volta a respeitarem isso, porque eu sentia que meus limites não eram importantes para os outros, e um documento me pareceu a melhor estratégia pra conquistar esse respeito; na minha rotina diária, eu já lido com as coisas que me incomodam. Não era nenhuma novidade.
Apesar disso, subestimei totalmente o poder do diagnóstico. Fiquei com medo, porque na mesma época uma amiga foi diagnosticada com autismo e ela se transformou em outra pessoa: de repente, ela não conseguia mais fazer nada que sempre fez, tudo era em função do autismo e eu a vi se reduzir ao diagnóstico, como se essa fosse toda a personalidade dela. Mas, pra mim, foi completamente diferente: eu senti alívio. De repente, muita coisa que eu sempre soube sobre mim tinha um nome, e eu podia ser mais firme com os meus limites.

O transtorno de processamento sensorial é uma doença que se vê muito em pessoas com autismo, mas é pouco comum na população geral. Trata-se de uma condição neurológica onde os estímulos sensoriais enviados ao sistema nervoso central não são adequadamente processados, o que dificulta a relação da pessoa com o ambiente externo. Quem tem TPS pode tanto ter a hiposensibilidade, não identificando os estímulos a não ser que sejam muito intensos (como aquelas pessoas que não sentem dor), quanto a hipersenibilidade, quando os estímulos são sentidos com maior intensidade que o esperado, quase como que processados "em excesso". A TPS pode afetar qualquer um dos 5 sentidos - audição, visão, olfato, paladar e tato, e algumas sensações típicas podem causar desconforto ou sofrimento para quem é hipersensível a alguma delas (ou todas).
Eu tenho hipersenbilidade sensorial. E ao mesmo tempo que ter essa informação não mudou em nada o que eu sabia sobre mim, mudou completamente a minha relação com o mundo.

Eu cresci ouvindo que eu era mimada, que eu tinha frescura, 'não me toques' e, principalmente, que eu era muito chata. Porque eu não ligo de tocar as pessoas, mas eu ligo quando elas me tocam. Porque eu não tenho seletividade alimentar, mas não consigo comer os alimentos em determinadas texturas - como, por exemplo, legumes que foram excessivamente cozidos, ou bananas amassadas. Porque eu preciso comprar cobertores, lençóis e toalhas presencialmente, e preciso passar a mão nos tecidos antes de decidir se quero eles ou não. Porque eu odeio lugares lotados, e fui ficando cada vez mais reservda depois de adulta, e porque eu odeio lugares como bares e baladas. Porque o sol me cega, e eu não consigo ficar olhando pra um ponto fixo ou olhar para cima e para as pessoas em dias iluminados. Porque, por exemplo, eu passei a minha vida inteira dizendo que injeção e hemogramas dóem, e sempre tive que ouvir que era exagero meu e que era "só uma picadinha, a gulha é minúscula".
Nunca foi frescura. Mas eu sou uma das únicas pessoas nos meus círculos sociais que sente todas essas coisas com esse nível de intensidade.

Na devolutiva com o neuropsicólogo, ele me falou uma série de coisas que eu não imaginaria. A primeira, que diferente do que eu pensava, eu tenho uma excelente memória. Inclusive, algo que eu já suspeitava, de que tenho capacidade elevada (ou altas habilidades/superdotação). Eu de fato sou inteligente, e de fato minha mente é mais acelerada que a das demais pessoas. Diferente de pessoas com autismo, eu tenho ótimas habilidades sociais, sou muito sensível ao 'subtexto' das situações e tenho uma grande empatia.
Mas, infelizmente, toda essa potência é prejudicada pela exaustão que o TPS me causa. Ao contrário do que as pessoas do meu trabalho me fizeram pensar, eu tenho uma habilidade de me 'auto-regular' excelente, porque eu estou me contendo o tempo inteiro. Me contendo pra não gritar com as crianças gritando no shopping; me contendo pra não apagar todas as luzes de um ambiente; me contendo pra não me fechar numa situação social porque eu estou mentalmente exausta com a sobrecarga sensorial que eu estou enfrentando. Eu passei a vida discutindo sobre ter ou não ansiedade e depressão porque eu não tenho sintomas consistentes o suficiente pra classificar os transtornos - e o fato é que eu realmente fico ansiosa e deprimida, porque eu estou sempre exausta e estressada com a "overdose sensorial" que eu vivo.

Esse mesmo transtorno me causa enxaqueca crônica. E é curioso que foi justamente esse o gancho que deu o start em todo esse processo - um único artigo que eu li na faculdade, na época em que eu entendi que a enxaqueca crônica não tinha cura e eu precisava buscar informações pra aprender a viver com ela. Era um texto muito objetivo e com poucas informações, levantando a hipótese de que a enxaqueca era causada pela hipersensibilidade dos neurotransmissores receptores de dor, ou seja: meu cérebro poderia interpetar uma luz forte como dor, um som alto como dor, e por esse motivo, eu sentia dores constantes.
Vai fazer 1 mês que recebi o meu laudo, e eu já consigo identificar quando a sobrecarga sensorial vai me causar enxaqueca. O quanto ela afeta o meu sono. O quanto eu realmente não devo fazer mais uma certa atividade, porque meu cérebro já está sobrecarregado e eu preciso eliminar os estímulos a minha volta.

Dois dias depois de receber o diagnóstico, eu me peguei pensando em todas as vezes que eu pontuei um incômodo e fui hostilizada ou ridizularizada por isso. E eu me peguei chorando, de soluçar, de alívio.
Alívio de saber que não era 'coisa da minha cabeça', que não era frescura, 'não me toques', nem chatice. É uma doença. É um problema fisiológico no meu cérebro, completamente fora do meu controle, mas que agora eu sei que existe e validou todo o sofrimento que eu vivi em silêncio por anos da minha vida.

Minha relação com a minha família melhorou, porque agora ninguém bate boca comigo quando peço pra apagarmos as luzes. Porque agora eu imediatamente peço desculpas e explico que estou sobrecarregada quando tem 10 estímulos chegando ao mesmo tempo e eu grito e perco a paciência com alguém. Eu me sinto no direito de comunicar as pessoas que certas situações e ambientes não me fazem bem, e me sinto mais segura de que eu posso e devo colocar esses limites e eixigir que sejam respeitados.
Meu laudo não me rotulou, mas ele validou uma vida de sofrimento que eu carreguei em sozinha em silêncio, e eu me sinto leve. Vista. Menos chata.

Receber um diagnóstico pode transformar muitas coisas, mas pra mim não mudou nada. Ao mesmo tempo, mudou tudo, e é maluco colocar dessa forma dual, mas é uma dualidade muito real. Ao mesmo tempo que eu sinto que eu sempre soube, agora eu realmente sei, e ter um nome fez muita diferença pra mim. Me senti vista e ouvida de uma forma que eu nem sabia que precisava, e em vez de limitada, me senti potente.
Não é falta de esforço, não é falta de boa vontade, é porque eu sinto tudo em excesso mesmo. E ter esse conhecimento sobre mim mesma foi muito importante, porque de repente tantas situações foram colocadas em perspectiva, e eu finalmente deixei de me julgar ou me culpar por uma série de reações 'descontroladas' que eu tive, ou que ainda tenho. A única palavra que eu consigo usar para resumir a minha experiência é "alívio", porque no fim, eu estou me sentindo muito aliviada: do julgamentos, da necessidade de me 'adequar', da necessidade de me conter, do sofrimento que eu sinto. Eu estou aliviada em saber quem eu sou, meus limites e potências, e isso é algo que vale todo o dinheiro do mundo, por mais cara que seja uma avaliação neuropsicológica.

Infelizmente, é meio difícil achar algo sobre o TPS em adultos, porque ele é muito associado com crianças e com autismo - e agora que eu sei que, de fato, eu tenho um hiperfoco bem itenso por causa das AH/SD, eu tenho evitado fazer pesquisas mais científicas a respeito. Eu não preciso ficar pilhada com isso, eu tenho profissionais competentes que podem cuidar de mim, e eu vou confiar neles para traçar um plano de cuidado. Não me importa muito os detalhes do transtorno ou o número alto do meu QI, me interessa saber porque eu sempre me senti tão diferente das outras pessoas. Não é falta de habilidade, de vontade, de dedicação: eu experencio a vida de uma forma totalmente diferente, e mesmo com mais de 30 anos nas costas, parece que eu finalmente tenho as rédeas da minha vida nas mãos, e posso explorar a imensidão do mundo da minha própria forma.

No fim, receber um diagnóstico era tudo o que eu precisava.

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Written by Shana | 25 de janeiro de 2025 | 11 Comentários | link to this post



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