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(24) Para quem te deu a melhor memória


Vô,

A única lembrança que eu tenho do senhor é do dia em que eu te perguntei se o doce que você gostava de comer era gostoso, e você perguntou se eu queria experimentar e dividiu ele comigo. O doce era aquela geléia de mocotó branca e rosa, que hoje em dia achamos no mercado, e até hoje eu adoro comer. E sempre que vejo o doce, me lembro da doçura do senhor.
A outra lembrança que eu tenho de você, infelizmente, é de quando me levaram ao cemitério pra ver a sua lápide. E era uma manhã linda e ensolarada, e eu não entendi muito bem o que você estava fazendo ali na grama, mas deixei pra lá. Depois, eu senti falta do senhor, e só muitos e muitos anos mais pra frente é que eu entendi o que tinha acontecido, e porquê que toda vez que minha mãe me levava pra te visitar, era naquele pedaço de terra com uma placa de mármore e uns nomes de umas pessoas que eu não conhecia.
Hoje eu sei quem são as pessoas. Sei, também, porque eu te visito lá, e sei também porque o senhor sumiu. E porque meus pais me deixaram com minha outra avó num dia de chuva, e ninguém deixava eu ir com eles. Eu tinha três anos, você sabe, e minha mãe achou que não ia ser muito bom pra mim participar do funeral. O senhor morreu em Novembro, e o clima estava aquele caos de verão. Mas por incrível que pareça, a melhor lembrança que você me deu não foi ter dividido seu doce favorito comigo; por incrível que pareça, o senhor nem está na minha melhor lembrança. Mas se não fosse o senhor, essa lembrança não existiria, então eu te agradeço.
O que o senhor me deixou foi a magia do Natal. Aquele carinho e satisfação que o senhor sentia em ter a sua família reunida foi o que você me deixou de herança - naquele ano, minha mãe decidiu que ia fazer o Natal em casa. Foram 4 mortes em sequência, e ninguém tinha nada para celebrar, mas era a sua data favorita e  senhor nunca deixou de fazer uma ceia para os seus filhos - e meu pai, porque até hoje meus tios reclamam de como ele era mais seu filho do que os que você ajudou a conceber. E minha mãe, amável como o senhor a ensinou a ser, decidiu que te deixaria muito triste saber que ninguém fez a ceia de Natal "por sua causa". E daí ela e meu pai decidiram que te deviam isso.
E foi assim que nasceram as lembranças mais felizes da minha vida - a tradição de montar a árvore em 2 de Novembro, as ligações e listas pra organizar a festa, meu pai chegando em casa com sacolas e sacolas de enfeites e uma árvore nova. Sair com minha mãe pra comprar as roupas "de fim de ano", os presentes e lembrancinhas. Receber as pessoas em casa, e ficar animada sabendo que eu ia brincar com todos os meus primos e primas por um tempão, porque as duas partes da família vinham na nossa casa. Comer comida gostosa, abrir presentes, ser enganada pelos meus pais e tios e, depois de grande, ver meu irmãos e meus priminhos pequenos sendo igualmente enganados por eles. Acreditar no Papai Noel e na magia do Natal, mesmo depois de adulta, e se encantar com o verde, vermelho e dourado que toma conta de São Paulo quando chega Novembro.
Todo mundo tem boas lembranças do senhor - e eu cresci ouvindo muitas e muitas histórias, com muita saudade e com muito carinho no coração. E me contam também sobre como eu era a neta que você mais adorava, como você se divertia comigo todo final de semana, e do quanto eu senti saudade quando você se foi - sem ter idade o suficiente pra entender o que era a morte. Até hoje eu gosto de comer doce de mocotó, e até hoje tenho aquela bonequinha que você me deu quando eu tinha um aninho - que você só quis me dar, e que eu cuidei com tanto carinho que ela segue comigo, 26 anos depois. E até hoje eu amo o Natal, assim como o senhor amava, e foi graças a você que eu pude viver tantos momentos doces nessa época do ano.
Obrigada, vô, por ter me dado de presente as minhas melhores memórias. A sua é, sem dúvida, uma delas também.

Com muito carinho e saudade, da sua neta
B.

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Written by Shana | 15 de dezembro de 2020 | 5 Comentários | link to this post



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